'Vamos lá fazer o que será"

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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

ENCANTAMENTO- Irma Galhardo



                                                          Encantamento

O sonho foi do meu pai e do seu amigo de infância.  Sonho mesmo, desses que acontecem depois de dormir.  Será que há alguma explicação freudiana para sonho compartilhado?

Um morto voltou em sonho. Precisava se desafogar do fato de ter enterrado ouro em vida, um ouro que ocultou avaramente, possivelmente imputando privações materiais à própria família. Para garantir a eficácia da missão, voltou não apenas para um escolhido, mas para dois, escolhidos criteriosamente, em uma minúscula cidade de interior. Como um deles foi meu pai, o homem mais íntegro que conheci, cresci acreditando piamente em tudo que aqui relatarei.  Até porque só depois é que li Nietzsche e meus olhos enxergaram outras verdades.

Meu pai contava que no sonho, o morto lhe pedia que procurasse um amigo e fossem juntos a uma determinada casa, desenterrar um ouro. Ao acordar foi ao encontro do amigo, que já estava no meio do caminho, vindo exatamente encontrá-lo, pois também havia sonhado igual e recebido as mesmas orientações. Mas como eram jovens e a história aconteceu ainda na década de 50 do século XX, numa pequena cidade cheia de medos, nada fizeram. Os anos se passaram.

A casa continua lá. Meu pai, sem cumprir a vontade do morto, tornou-se morto também. 
Não compraremos, meu irmão e eu, a tal casa, como planejamos. Não tenho mais interesse. O principal tesouro que lá havia para a menina que, movida pela curiosidade, conseguiu ali se imiscuir um dia, é insalubre. Atualmente, talvez, morto. Sim, o grande tesouro que provocou faíscas em meus olhos foi um “rego”dentro da cozinha. Um estreito córrego, com piabas, que só existia ali, devido à carência material dos moradores da pobre casa.

Eu, que na época não entendia de insalubridade  nem de muitas coisas, que ainda “mantinha a mente aberta, tão aberta a ponto do cérebro cair” e desapontar Sagan*, na hora interpretei o sonho do meu pai: o ouro havia se encantado, como em toda boa história de encantamento. Só que a cobra eem que ele se transformou para picar a pessoa não escolhida, como sempre acontece nos causos, foi uma cobra-água. Caudalosa e arredia como o réptil, porém apenas elemento água. Um charmoso reguinho que ainda hoje serpenteia em minha memória e que por longos anos foi o tesouro que mais desejei! Apesar de ser, contraditoriamente, o calcanhar de Aquiles da desafortunada família daquele que encantou o tesouro!


 *Carl Sagan, cético e astrônomo, autor da frase: "você deve manter sua mente aberta, mas não tão aberta que o cérebro caia".




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