Santa Luzia Barroca de Porto Alegre do Tocantins
Mãe Raimunda já desencantou, no linguajar dos moradores da
graciosa cidade de Porto Alegre do Tocantins. Enquanto viveu, porém, encantou a
todos com suas histórias e cuidados com a Santinha. A Santa, ninguém mais sabe
como chegou ali. Talvez, por milagre, como contam. Talvez, por herança de algum
escravo devoto, que utilizou sua destreza com o cinzel para dar formas ao
pequeno pedaço de madeira, exprimindo assim sua religiosidade ou seu veio
artístico. Agora, a arte sacra faz parte do acervo religioso da igreja matriz,
que fica no meio da praça, no centro da cidade, cuidadosamente guardada pelo
olhar do Senhor Marcionílio.
Seu Marcionílio, homem íntegro, temente e com uma história
de vida preenchida pelo trabalho voluntário, nos passa sensação de
familiaridade. É como se já o houvéssemos encontrado em alguma página dos
Irmãos Grimm, cometendo bondades e semeando encantos. Talvez tenha aprendido
diretamente com Mãe Raimunda, pois sendo órfão desde sempre, encontrou nela a
resposta às suas necessidades de afeto, de procura maternal. Mãe Raimunda
estava ali e, dentre outros predicados, era exímia contadora de causos!
Por ele fique sabendo que na época das impunidades, mãe
Raimunda costumava fugir dos invasores, levando ao seio a pequena santinha. Se
apegava a ela e só a largava quando conseguiam a graça de voltarem em
segurança. Foi assim também quando aconteceu o episódio do Duro* e o horror se espalhou
na região. Não fosse Mãe Raimunda e sua providencial capacidade de esgueirar
por caminhos impensados, não teríamos essa relíquia.
Porto Alegre do Tocantins é uma cidade bem original. No meio
da praça há alguns túmulos, dos seus fundadores e familiares. Fica ainda o
busto de um antigo prefeito e um mastro, bem grande, todo enfeitado de fitas
coloridas. Tanto o mastro é herança de Mãe Raimunda como a tradição de
comemorar os festejos de Santa Luzia. Passei por lá em dezembro. O mastro embora
estivesse arrancado, deitado no chão, ostentava ainda as fitas que o enfeitavam
e contribuía, com seu enorme tamanho, para imprimir um ar de surrealismo à
cena.
Surreal também é o Conjorinho, personagem lendário de lá. Os
moradores contam que o Conjurinho gosta de aparecer para quem não faz o bem.
Ele se manifesta através do barulho de ossos, como se alguém arrastasse um saco
com ossadas, e segundo eles, é um som aterrorizante! O Conjurinho costuma se
arrastar até a pessoa se redimir e oferecer muitas orações.
Sobressaindo a tudo, está a antiga casa da saudosa Mãe
Raimunda. Última palhoça, ao lado da praça, resistindo ao progresso e
contrastando com casas modernas feitas de tijolos. É uma casa de sapé e não uma
casinha simplesmente. É grande como era o coração da dona. Foi construída
exatamente para abrigar muitos, servir de porto seguro para desafortunados que
cruzassem aquele caminho.
O corpo de mãe Raimunda não está na praça pública, como os dos
fundadores que ali tem seus túmulos. No entanto, ela continua viva no
imaginário daquelas pessoas, muito mais que os homenageados com morada eterna na praça. Falaram-me foi
sobre ela quando perguntei a respeito dos túmulos, seu nome foi evocado em
todas as ocasiões. Durante o tempo que lá fiquei, ouvi-o desde o início até o
último momento. Ela está tão presente ali, como a santinha barroca que ajudou a
proteger ou como a tradição dos festejos que ajudou a perpetuar. Seu amor fincou fortes
raízes que farão com que sua memória seja preservada e que seja venerada, como
uma santa: Santa Raimunda de Porto Alegre do Tocantins.
·
* Referencia a um fato histórico ocorrido no início do século XX na cidade de Dianópolis, situada a poucos
quilômetros de Porto Alegre do
Tocantins, onde nove cidadãos de uma mesma família foram massacrados em praça
pública e o medo se espalhou na região. O episódio está registrado no livro “O
Tronco” de Bernardo Élis.
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