'Vamos lá fazer o que será"

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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Santa Luzia Barroca de Porto Alegre do Tocantins - Irma Galhardo

                               Santa Luzia Barroca de Porto Alegre do Tocantins

Mãe Raimunda já desencantou, no linguajar dos moradores da graciosa cidade de Porto Alegre do Tocantins. Enquanto viveu, porém, encantou a todos com suas histórias e cuidados com a Santinha. A Santa, ninguém mais sabe como chegou ali. Talvez, por milagre, como contam. Talvez, por herança de algum escravo devoto, que utilizou sua destreza com o cinzel para dar formas ao pequeno pedaço de madeira, exprimindo assim sua religiosidade ou seu veio artístico. Agora, a arte sacra faz parte do acervo religioso da igreja matriz, que fica no meio da praça, no centro da cidade, cuidadosamente guardada pelo olhar do Senhor Marcionílio.
Seu Marcionílio, homem íntegro, temente e com uma história de vida preenchida pelo trabalho voluntário, nos passa sensação de familiaridade. É como se já o houvéssemos encontrado em alguma página dos Irmãos Grimm, cometendo bondades e semeando encantos. Talvez tenha aprendido diretamente com Mãe Raimunda, pois sendo órfão desde sempre, encontrou nela a resposta às suas necessidades de afeto, de procura maternal. Mãe Raimunda estava ali e, dentre outros predicados, era exímia contadora de causos!
Por ele fique sabendo que na época das impunidades, mãe Raimunda costumava fugir dos invasores, levando ao seio a pequena santinha. Se apegava a ela e só a largava quando conseguiam a graça de voltarem em segurança. Foi assim também quando aconteceu o episódio do Duro* e o horror se espalhou na região. Não fosse Mãe Raimunda e sua providencial capacidade de esgueirar por caminhos impensados, não teríamos essa relíquia.
Porto Alegre do Tocantins é uma cidade bem original. No meio da praça há alguns túmulos, dos seus fundadores e familiares. Fica ainda o busto de um antigo prefeito e um mastro, bem grande, todo enfeitado de fitas coloridas. Tanto o mastro é herança de Mãe Raimunda como a tradição de comemorar os festejos de Santa Luzia. Passei por lá em dezembro. O mastro embora estivesse arrancado, deitado no chão, ostentava ainda as fitas que o enfeitavam e contribuía, com seu enorme tamanho, para imprimir um ar de surrealismo à cena.
Surreal também é o Conjorinho, personagem lendário de lá. Os moradores contam que o Conjurinho gosta de aparecer para quem não faz o bem. Ele se manifesta através do barulho de ossos, como se alguém arrastasse um saco com ossadas, e segundo eles, é um som aterrorizante! O Conjurinho costuma se arrastar até a pessoa se redimir e oferecer muitas orações.
Sobressaindo a tudo, está a antiga casa da saudosa Mãe Raimunda. Última palhoça, ao lado da praça, resistindo ao progresso e contrastando com casas modernas feitas de tijolos. É uma casa de sapé e não uma casinha simplesmente.  É grande como era o coração da dona. Foi construída exatamente para abrigar muitos, servir de porto seguro para desafortunados que cruzassem aquele caminho.
O corpo de mãe Raimunda não está na praça pública, como os dos fundadores que ali tem seus túmulos. No entanto, ela continua viva no imaginário daquelas pessoas, muito mais que os homenageados com morada eterna na praça. Falaram-me foi sobre ela quando perguntei a respeito dos túmulos, seu nome foi evocado em todas as ocasiões. Durante o tempo que lá fiquei, ouvi-o desde o início até o último momento. Ela está tão presente ali, como a santinha barroca que ajudou a proteger ou como a tradição dos festejos que ajudou a perpetuar. Seu amor fincou fortes raízes que farão com que sua memória seja preservada e que seja venerada, como uma santa: Santa Raimunda de Porto Alegre do Tocantins.

·          * Referencia a um fato histórico ocorrido no início do século XX  na cidade de Dianópolis, situada a poucos quilômetros de  Porto Alegre do Tocantins, onde nove cidadãos de uma mesma família foram massacrados em praça pública e o medo se espalhou na região. O episódio está registrado no livro “O Tronco” de Bernardo Élis.








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